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Última saída

Por Natália Chagas

Ela abriu os olhos inchados de chorar, e as lágrimas continuavam descendo sem o menor esforço, quase involuntárias. O sol, que parecia ter escondido por dias, trazia o peso de estar viva. “Uma nova chance” eles disseram. Ela ainda não enxergava para quê.

Lisandra ficou ali deitada por um tempo olhando as marcas no antebraço e pernas, arranhões e roxos que pareciam que nunca mais sairiam. O corpo ainda doía, latejavam os músculos que receberam a surra de laranjas envolvidas em uma toalha que não deixavam marcas. Sentou na cama, tentou colocar o pé no chão, quase não suportou o estalo do osso que havia recebido a martelada no dia anterior quando tentava fugir.

Depois de arrebentado o nylon que segurava seus pulsos, pegou o taco de beisebol que recebera nas costas por tantos meses, golpeou na cabeça de seu agressor, fazendo-o cair em dor, correu até a porta, mas ainda levando a martelada no peito do pé, saiu em disparada em um misto de choro, grito e pedido de ajuda.

A roupa rasgada, o sangue na boca, os olhos desfigurados em roxos e inchaços quase não permitia que os vizinhos a reconhecessem. Mas finalmente, alguém a levou ao hospital. De lá para delegacia, e viu que não tinha outra saída que não fosse a casa dos pais.

O pai a recebeu em abraços e choros. Ele deu a desculpa que a mãe tinha ido dormir com dor de cabeça. Foi melhor assim. Lisandra não conseguiria enfrentar a mãe naquela noite.

Naquela manhã, seguiu caminhando do quarto para o banheiro, olhou para o espelho e sentiu vergonha. As lágrimas desceram novamente. Ao tentar escovar os dentes, pedaços quebrados ainda se soltavam junto ao sangue.

Foi até a cozinha e pegou um iogurte da geladeira, sentou-se à mesa, começou a comer. Albertina, a mãe, surge faceira à porta com perfume, batom e vestido florido. Os olhos das duas se encontram silenciando o riso de Albertina e o choro de Lisandra. Os olhares desviaram.

– Esse iogurte não é seu.

– É do meu pai.

– Continua não sendo seu.

– Eu falo com ele.

– Isso! Esconda para debaixo das asas dele.

– Não estou escondendo.

– Humpf… Quando vai procurar trabalho? Vai viver de quê agora?

– Ainda não sei. Vou pensar nisso ainda.

– Pensar não paga boleto.

– Não tenho boleto para pagar.

– Foi modo de dizer. É claro que você não tem boletos. Você não tem nada, nem marido mais, pelo que seu pai falou.

– Será que você não pode me dar um dia de sossego?

– A vida não dá sossego, querida. Estou tentando te ajudar a viver.

– Amanhã, mamãe.

– Já pedi pra me chamar de Betinha. Não gosto desses nomes convencionais.

– Mas é o que você é: minha mãe. Não tem saída para isso.

– Não foi algo que escolhi, me impuseram. Não preciso viver com esse fardo para o resto da minha vida. Você é adulta. Não tem porquê você insistir nisso só para me torturar.

– Você realmente não escolheu e nunca praticou.

– Sempre fui uma excelente mãe. Te dei de tudo.

– Inclusive isso que você chama de amor que foi surra atrás de surra.

– E ainda não aprendeu mesmo com todas as minhas tentativas de te ensinar.

– Não tinha o que aprender. Não há o que aprender apanhando.

– Podia ter aprendido a segurar um marido.

Lisandra saiu mancando para o quarto com a força do ódio em punho fechado.

Deitou, dormiu e esperou o pai chegar. Pediu para conversar. Ele sentou calmamente e falou:

– Sei que você deve estar muito triste com todo o ocorrido. Mas temos que começar a pensar no seu futuro. Amanhã vamos procurar um apartamento e um emprego para você. E você vai poder viver sua vida livremente.

– Mas pai, eu não sei se dou conta…

– Dá, sim, minha filha. Tem que dar. Todo mundo vive a vida que Deus dá a gente.

– Eu não poderia ficar mais uns dias?

– Minha filha, você e sua mãe nessa casa não vai dar certo. Eu não vou aguentar. E estou muito velho.

– Tá bem, papai.

Repassando sua vida na memória, Lisandra se lembrou de sua mãe brigando com seu pai. Eles gritavam, e ele batia em si mesmo para não bater na esposa. Quando conheceu Ruan, ele se batia quando ficava nervoso. Ela achava que aquilo era um sinal de amor pois remetia à proteção do pai pela mãe. Lisandra não via as costas da mãe salpicada de cortes que o pai proporcionava para ela aprender como ser uma dama da sociedade. Lisandra tinha um ciclo a ser cortado.

Lisandra tomou um longo banho quente. Pegou um resto de roupas que havia sobrado da época de solteira. Sem bilhete, sem abraços, sem adeus. Sem fardo, falsas esperanças ou tristezas a carregar. Apenas ela e um mundo inteiro a reconstruir. Lisandra sabe que será sozinha no mundo, e assim prefere para que nunca mais leve um tapa sequer.

DESTAQUE: INSCRIÇÕES ABERTAS PARA A 13ª MOSTRA ECOFALANTE DE CINEMA

OS TRAMBIQUEIROS DO SENHOR