Sobre

O que cola tudo

Por Natália Chagas

Rosário acordou cedo para aproveitar ao máximo possível aquele dia livre. O marido tinha ido pescar no fim de semana como era sua forma de relaxar sempre que estava tenso. Naqueles dias muitos problemas haviam se acumulado no escritório, então ele decretou sua alforria para descansar a mente e o corpo. Mal sabia ele que por detrás de todo apoio de Rosário havia uma certa satisfação em poder ficar um tempo para si, apenas isso que ela queria, respiro e autocuidado. Era uma das coisas boas naquele casamento bem-sucedido, os dois cuidavam para poder cultivar a relação. Imediatamente, Rosário deu a liberação, que não era sempre, para que os três filhos fossem para a casa da avó paterna na cidade vizinha. Sendo um ambiente interiorano, eles conseguiam brincar na rua com muitos amigos, e a avó cuidava deles como ninguém, e ainda lhes dava todo mimo do mundo. Assim todo mundo ficava feliz.

Então naquele sábado, Rosário resolveu cuidar de si. Limpeza de pele, banheira quente por tempo indeterminado, vinho e queijos, almoço lento e principalmente silêncio. Ela sentia falta de estar com os próprios pensamentos como fazia quando solteira, de ter tempo para se organizar e poder parar quando quisesse. Era tudo que ela queria depois de um longo período de turbulência. Por isso, ela se sentiu livre ao acordar e ter apenas Maria em casa. Rolou na cama alguns minutos tentando clarear a mente de todos os problemas que não tinham solução naquele momento. “Pensar sem agir causa estresse e má digestão. Saber que os problemas existem é uma coisa, vive-los antes do tempo é burrice.” – repetia para si mesma as palavras de sua mãe. Uma batida na porta:

– Bom dia, vim ver o que a senhora quer para o dia. – disse Maria.

– Maria, gostaria de um café e umas torradas aqui na cama, por favor. Serei dondoca hoje. Mas depois do café, queria que você fosse na feira de Duquesa para fazer umas compras de verduras frescas e peixe. Eu sei que é longe, mas também sei que sua irmã mora por lá. Você pode aproveitar e fazer uma visita a ela.

Maria sorriu ao ver a patroa cuidando de si e dela. Era bom trabalhar na casa porque Rosário garantia todos os direitos de trabalhadora e a tratava bem. Era bem diferente da outra casa que ela trabalhou antes. Ela havia sido vendida pelos pais aos tios de Rosário que a tratavam mal. Rosário tirou Maria daquela casa, matriculou a moça em um supletivo para garantir sua formação e ajudou a recriar laços com a família que ela tinha cultivado tanto rancor.

– Eu fico muito feliz de poder ir na casa de minha irmã, mas quem vai cuidar do seu almoço? Nessa toada, vou acabar chegando só de tardezinha.

– Pode deixar que eu mesma faço no meu tempo. Quero apenas bastante café para o dia todo, e agora mais cedo minhas torradas com bastante manteiga e o pote de mel para eu me lambuzar. – Sorriu.

Maria saiu e foi buscar o café. Rosário abriu sua gaveta no criado-mudo, e foi tirando uma série de coisas que havia postergado por não serem emergenciais. Uma carta que havia iniciado para sua amiga Lívia, agora morando em Portugal, não era emergencial por trocas de mensagens no zap, mas era um desejo das duas que pudessem trocar correspondências como faziam antigamente; um prato de parede que caiu e rachou bem ao meio facilmente reparado com uma cola forte haveria em algum momento de voltar a decorar sua casa; a máscara de lama que sua prima havia lhe trazido de Araxá que nunca havia sido usado pois os filhos não lhe deixariam em paz com a cara enlameada foi o primeiro dos itens a ser colocado em ação.

Quando Maria entrou com o café dentro do quarto chegou a levar um susto com Rosário e seu rosto marrom.

– Cruzes, dona Rosário! O que é isso?

– É um creme que dizem limpar e tratar o rosto. Estou testando. Maria, por favor, me traga a superbonder que fica na geladeira para eu consertar este prato, e minha carteira para eu te dar dinheiro para o transporte e compras.

– Não quer que eu conserte para a senhora?

– Não, pode deixar. Quero que você vá às compras o quanto antes para que pegue as verduras mais frescas possíveis. passe na peixaria de Osvaldo e diga que esta lista de peixes é para mim. Ele vai escolher a dedo, tenho certeza. – Entregou a Maria as duas listas, e retomou sua carta para Lívia.

Leu aquele início de escrita com calma e atenção. Viu o tanto que estava desatualizada em suas notícias, tirou o papel, rasgou e começou a pensar como gostaria que a carta fosse. Nada de notícias, estas podiam ser dadas imediatamente no mundo virtual, nada de tristezas, estas seria melhor nem dar. Resolveu escrever entre desabafos e filosofia.

Maria entrou novamente com a carteira e a cola:

– Trouxe a garrafa de café, porque pelo jeito a senhora vai ficar aqui ainda por algum tempo.

– Ah, Maria! O que seria de mim sem você? Tome dinheiro para uber e compras. Estou lhe dando dinheiro para ir de carro, se quiser economizar com moto na ida, sem problemas, inclusive compre um presente para seu sobrinho. Mas por favor, volte de carro, tá?

– Sim, senhora.

E Maria a deixou só com seu café, seu silêncio e pensamentos. Ainda pensado sobre a carta, colou o prato, que imediatamente, se transformou em quase novo. Mal se percebia o trincado. Levantou-se da cama para ir ao banheiro com a cola na mão, e quando ia fechá-la, viu que um pingo dela caiu no chão. Quase como um instinto de limpeza, colocou o dedo indicador por cima para tirar do chão e jogar fora. A cola, bem mais rápida que ela, grudou seu dedo ao chão. Sentiu o dedo queimar e um sensação uma força gravitacional puxando seu dedo para baixo. Ainda ouviu o portão bater, e sabia que Maria não ouviria seu chamado já que os quartos eram na parte de trás da casa bem distante da saída.

Rosário tentou puxar o dedo, descascar a cola com as unhas da mão esquerda, temia que perdesse pedaço da pele do indicador ao arrancar de uma vez para se desgrudar dali. Olhou para a cama, e viu no criado-mudo do outro lado seu celular. Não conseguiria alcançar estando presa ao chão e naquela posição. Bem à sua esquerda estava a cama, imediatamente à sua direita se deparava com a parede, e em suas costas o criado-mudo do marido. Não conseguia esticar as pernas para nenhum lado. Ficou ali por alguns minutos, tentando ter uma brilhante ideia e nada lhe vinha à mente.

Resignada, sentou-se de pernas abertas com o dedo bem à sua frente sem ter o que fazer. Olhava para o chão, e via as sujeiras acumuladas em cantinhos que não percebia ou não faziam diferença. Refletiu sobre quantas coisas passavam por sua vida desapercebidas por falta de atenção ou até mesmo pela escolha cômoda da negligência. Pensou em seus filhos e em como os amava mas o tanto de tempo que eles lhe sugavam com coisas que eles mesmos podiam resolver. Um dever de casa sozinhos, a arrumação de quartos e até mesmo a preparação da merenda da escola poderiam fazer parte de suas tarefas para criar uma independência. Lembrou-se do tanto que sofreu quando teve de ir para a capital estudar porque sua mãe nunca havia demarcado o território da disciplina para a liberdade. Ela não queria que seus filhos sofressem, então era melhor penar com ela na exigência do que no mundo apanhando. Decidiu mudar sua orientação na educação com as crianças. Assim que Afonso chegasse iria discutir isso com ele.

Olhou para sua cama. Lembrou de um tempo em que Afonso não conseguia tirar as mãos de seu corpo. Fechou os olhos e a imagem dos dois na semana que passaram sozinhos em uma casa em Ubatuba completamente pelados com noites e dias de total tesão e carinho como se o mundo fosse apenas aquilo, ou como se só aquilo importasse. Nem viram a cor do mar ou do céu. Viram apenas um ao outro. Olhou novamente para sua cama, e se deu conta que há mais de dois meses não transavam com a velha desculpa do cansaço ou correria. Virou-se levemente, até o ponto que dava, para suas costas, olhou para a gaveta dos pertences pessoais de seu marido. Aquele, junto com o escritório, era o ponto da casa de privacidade total. Ponderou que apenas ela respeitava esse contrato. Não havia limites para ele no meio das coisas dela. Debateu consigo mesma se abria ou não aquela caixa de Pandora. O que poderia haver lá? E se achasse algo suspeito ou comprometedor, o que faria? Entre a curiosidade e o medo, chorou.

Olhou novamente para o celular do outro lado da cama. Se pudesse pegá-lo, para quem ligaria? Seus pais já falecidos, seus dois irmãos morando distante, sua amiga em Portugal. Nenhum deles poderiam ajudar naquele momento surreal. Deu-se conta que seus laços mais fortes não passavam de sua juventude. Na vida adulta, ao se dedicar a casamento e filhos, não poderia contar com ninguém. Apenas Maria, que não estava lá. Não poderia impor uma amizade sem uma relação direta de paridade social ou de poder. Seria abuso de sua parte. Era uma grande parceira do dia-a-dia, mas não seria uma amizade real se não fossem iguais. Sentiu naquele momento a solidão de quem não se colocou na própria vida. Percebia que era figurante ao invés de sua protagonista. Novamente chorou com dó de si mesma.

Cansada, conseguiu colocar as pernas para debaixo da cama e esticar seu corpo. Permitiu-se o xixi que segurava há algumas horas e as lágrimas de alguns anos. Dormiu chorando.

Acordou com o chamado de Maria no escuro.

– Maria, estou aqui debaixo da cama.

– O que a senhora faz aí?

– Estou pensando na vida. – Gargalhou da própria situação incômoda. – Vá, pegue acetona. Meu dedo grudou com superbonder no chão. Encharque o algodão e esfregue entre meu dedo e o chão, e me tire dessa situação em que me encontro.

Enquanto Maria, delicadamente, e aos poucos descolava o dedo da patroa, Rosário pensava em escolhas e opções. Distribuía em sua mente uma série de possibilidades para onde poderia ir com sua vida, e como poderia se descolar da vida dos outros e ser livre. Uma coisa era certa: ela era sua própria vida daí em diante.

Santiago(Ch), 26 de junho de 2024

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