Não vou falar daquele bebê lindo e branquinho, de olhos verdes, cachinhos dourados, bracinhos, mãozinhas e perninhas gordinhas para o ar, bochechas fofas e boas de dar “chêro”, e um “buchinho” redondo que nos convida a fazer aquele barulho peculiar quando aplicamos uns beijos “assoprados”. Esse Menino Jesus, o Gesù Bambino, em sua imagem angelical e serena e que já vem com um ring light sobre a cabeça, contabiliza mais milagres do que sua versão de 33 anos depois, garantem os entendidos. Vou falar é do Jesus garoto, um guri danado, travesso, levado da breca, arteiro, inquieto e traquinas. Uma criança “virada num traque”. Um “pentelho”, como diria Fausto Silva. Meu amigo Juscelino Leite, lá de Mossoró, diante de tais atributos, afirmaria categórico: “Esse menino não vale um ‘cibazol’ vencido”!
Infelizmente, não existem relatos sobre esse período da vida do filho do Homem na Bíblia. A falta de detalhes é uma das características mais frustrantes dos Evangelhos canônicos – os quatro que foram incluídos no Novo Testamento. Os evangelhos de João e Marcos retratam Jesus como adulto desde o início. Mateus e Lucas até relatam histórias sobre o nascimento e a infância de Cristo, mas há um imenso vazio nessas narrativas: vemos Jesus bebezinho, depois temos um breve relato de uma passagem triunfal pelo Templo de Jerusalém, aos 12 anos de idade – e acabou. Nada mais se fala sobre o Jesus criança, adolescente ou jovem adulto.
No entanto, algumas passagens da infância de Jesus são narradas em um evangelho apócrifo – o “Evangelho da Infância” ou “Pseudo-Tomé” –, que contém histórias que contrastam com os textos bíblicos aceitos. Existem várias versões desse evangelho em diversas línguas antigas (grego, latim, siríaco, eslavo, georgiano, etíope e árabe), muitas delas de origem duvidosa, mas que continuam provocando celeuma.
É por essas e outras, que a meninice de Jesus continua sendo um tabu entre os cristãos e um mistério entre os estudiosos do cristianismo. Então é natural ficar chocado e curioso com algumas narrativas do “Evangelho da Infância”, cuja transcrição original, estima-se, data de meados ao fim do século 2. Essa datação baseia-se em outro documento do mesmo século, que cita o bispo grego Irineu de Lyon, segundo o qual o evangelho é inautêntico e herético. Coisas de bispo. Eis alguns trechos:
“Quando um menino começou a desfazer as represas de brinquedo que o garoto Jesus tinha feito na beira de um riacho, ele se irritou e falou: ‘Tolo injusto e irreverente! O que as poças d’água fizeram para te irritar? Eis que agora também tu secarás como uma árvore, e nunca terás nem folha, nem raiz, nem fruta’. No mesmo instante, o menino secou completamente”.
“Algum tempo depois, Jesus caminhava pelo vilarejo quando uma criança passou correndo e esbarrou em seu ombro. Irritado, Jesus esbravejou: ‘Não seguirás mais o teu caminho’. Naquela mesma hora, a criança caiu e morreu. O menino divino ainda faz os aldeões que vão reclamar dele com José ficarem cegos e amaldiçoa um de seus professores”.
“Por outro lado, Jesus ressuscita um amiguinho que caiu do telhado de uma casa, cura pessoas e faz a madeira crescer milagrosamente para que José consiga terminar um de seus trabalhos de carpintaria”.
Recentemente – em meados de junho – deu-se a maior descoberta sobre o “Evangelho da Infância” em todos os tempos, e essa descoberta contou com a participação de um brasileiro: o papirólogo gaúcho Gabriel Nocchi Macedo, pesquisador e professor da Universidade de Liège, na Bélgica. Macedo e o húngaro Lajos Berkes, também papirólogo e docente do Instituto de Cristandade e Antiguidade da Universidade Humboldt de Berlim, descobriram um manuscrito em grego antigo de aproximadamente 1.600 anos, que já é considerada a versão mais antiga do “Evangelho de Pseudo-Tomé”. O fragmento foi encontrado na Biblioteca Estatal e Universitária Carl von Ossietzky, em Hamburgo, e faz parte de uma coleção reconhecida, eliminando quaisquer dúvidas sobre sua autenticidade.
O documento passou despercebido por muito tempo e era considerado apenas uma nota antiga e pessoal. Poderia ser uma carta íntima ou uma lista de itens domésticos. Durante a pesquisa, Berkes e Macedo inseriram algumas palavras identificadas no manuscrito em um banco de dados que reúne toda a literatura grega – desde os textos mais antigos até a Idade Média –, e quase que imediatamente perceberam que se tratava de trechos do controverso “Evangelho da Infância”.
Logo após a divulgação da descoberta na revista acadêmica alemã, Zeitschrift für Papyrologie und Epigraphik, uma manchete sensacionalista deixou os pesquisadores perplexos: “Fragmento de papiro egípcio cadastrado errado em biblioteca alemã detona percepções milenares sobre a Bíblia e o próprio Jesus”. Berkes esclarece: “Não é uma história nova. Então, não muda nada no que sabemos sobre os Evangelhos e sobre Jesus. Causou muito mal-entendido e polêmica, embora nós nunca tenhamos alegado nada”.
Entre os fragmentos identificados pelos dois pesquisadores, encontra-se a narrativa de como, aos cinco anos, Jesus estava perto de um riacho, onde manipulava argila e fazia figuras de pássaros, quando José, seu pai, o repreende por estar ativo no Sabá, o dia de descanso para os judeus. Em resposta, o menino bate as mãos, as aves ganham vida e saem voando. Simples assim.
Não me perguntem por que, mas ao ler sobre o “Evangelho da Infância”, lembrei da música “Um capeta em forma de guri” de Renato e seus Blue Caps gravada em 1965.
Nota do Autor: Essa música é uma versão de Renato Barros para “Shame and scandal in the family” de Slim Henry Brown e Huon Donaldson. Em 1986, Sérgio Mallandro fez sucesso com uma regravação que virou tema de abertura para o seu programa infantil “Hora do Capeta” (1987-1990) no SBT.
Ouça a versão original: “Um capeta em forma de guri”.
Conheci um capeta em forma de guri
De uma família tradicional
Surgiu um menino que era mesmo infernal
Seus primeiros passos ainda neném
Já foram “butinadas” na canela de alguém
Crescendo o menino pra escola entrou
De cara feia logo a professora olhou
No meio da aula num teco fatal
Mandou um coleguinha logo para o hospital
Conheci…