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CASO DE POLÍCIA

Nem sei como acertei o caminho de volta. A mente turva, os pensamentos em alvoroço, a culpa a mexer, e remexer, com os meus miolos.

Ao pôr os pés na sala, entreguei-me ao sofá. Sentado, com os olhos baixos, a cabeça perdida; a reviver a cena que testemunhara há pouco. Testemunhara não, protagonizara.

A casa recolhida em silêncio. Um silêncio de vergonha?

— Você já voltou, querido?!

Não reuni coragem de fitá-la, receio de que meus olhos me denunciassem. Sabia-os a janela da alma.

Como o silêncio voltasse a reinar, desta vez parecia-me mais abissal, ela me convidou:

— Vamos preparar um café fresquinho. Não é uma boa ideia?

A cena revista. A correria desabalada daquele senhor à saída do supermercado. A minha entrada, disperso. O choque entre nós dois. A pessoa no chão, um pacote de carne próximo dele. A voz de alguém a ordenar: “Pega ladrão!”

Da cena, como se em câmera lenta, a correr na tela do juízo, a parte relativa ao olhar do homem junto ao pacote, o objeto do furto. Em seus olhos, a placidez da fome, a entrega ao destino. Olhando para mim, e furando-me de remorso. “Lá em casa, senhor… a fome… senhor!”

— Não vai querer, não é? Não diga depois que eu não lhe ofereci! — Gervásia a me chamar, porém como se a voz dispersa pelos ecos da lembrança. Ou seria apagada pela força expressiva do olhar do pobre homem? “… fome… senhor…”

Enfiei mais os olhos nos detalhes do mosaico do piso da sala, na vã tentativa de me ocupar com algo do momento atual, e banir o fato recém-acontecido.

“Obrigado, senhor! Graças a você, conseguimos deter o meliante.”

Um segurança forte, vestido numa farda cáqui, os olhos escuros e sanguíneos, fitando-me da sua altura, enquanto dava-lhe uma chave de braço e ordenava a outro vigia que se aproximava: “Ligue para a polícia!”

A palavra polícia fez com que eu conseguisse abandonar o mutismo em que o inusitado me jogara:

— Desculpe, mas isto é caso de polícia?

O olhar de clemência do homem que fugia me cobriu com uma força estranha, e continuei:

— Nada foi levado. O pacote aqui está!

Notei que, quando recolheram a carne do chão, o gerente, homem gordo e de olhos cinza, ordenou:

— Segundo nosso protocolo de segurança alimentar, o produto será descartado.

O desespero do homem que se encontrava imobilizado, tão logo ouviu a orientação quanto ao descarte: “— Não, minha família… moço… temos fome, muita fome!”

&&&

A entrada na delegacia. Eu arrolado como testemunha.

— O senhor é a testemunha?

— Sim. De certa forma, sim.

O escrivão picava uns pedacinhos de bolacha, e dispunha-os junto à janela que dava para os fundos; fazia isso meticulosamente, enquanto aguardávamos a chegada do delegado. Seus olhos eram azuis, como o céu que se apresentava pelo gradeado da sala.

Foram tomados os depoimentos do guarda e do gerente. Fui, então, convidado a dar a minha versão.

Quando da minha tentativa de minimizar a ocorrência, o delegado me ameaçou:

— Você está em conluio com o meliante? Conhece-o de algum lugar?

Passei os olhos de espanto pela sala; com pouco, dei pela presença de um pássaro que bicava os pedaços de bolacha dispostos no umbral da janela e depois voava para o seu ninho. Nesse instante um riso luminoso se esboçou na boca murcha do escrivão.

Calei-me. Ou seria acovardei-me? A ocorrência foi encerrada; e o denunciado, levado às grades.

— Você está calado demais, Ferreira. Se abra comigo, meu bem.

As palavras de Gervásia precipitaram o meu choro, a assunção da culpa, minha máxima culpa:

— Eu não devia ter me calado, não devia. O caso não era de polícia! Fome, apenas fome, Gervásia! Ah, meu Deus! Ô, meu Deus!

Lá fora, varrido por ventos assanhados, o céu de Licânia se recobria de pesadas nuvens, como se o firmamento anunciasse assomos de fúria.

Escrito por Clauder Arcanjo

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