— Aceita uma xícara de chá, querido? — indagou-me Gervásia.
Nem lhe respondi, a cabeça ainda sob o impacto da cena que presenciara pouco antes.
— Algo o preocupa?
Novamente em silêncio, meti-me quarto adentro. Lá fitei-me ao espelho; no rosto, uma certa ruga de raiva pelo que assistira.
Ao retornar para a sala, joguei-me na poltrona e perdi-me em revisitar tudo o que me ocorrera há instantes.
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A rápida chuva que caíra no fim de tarde me forçara a interromper meus passos e procurar a proteção na frente do restaurante. Enquanto aguardava, passei os olhos pela rua e presenciei a cidade se preparando para a noite iminente. Cansado de procurar um novo emprego, de certa forma invejava a fadiga que flagrava na face daqueles que retornavam para casa depois de mais um dia de labuta.
Assim me encontrava quando, ao virar o rosto para o interior do prédio, dei pela presença de Domênica a uma mesa ao fundo, acompanhada de um senhor de meia-idade.
Sem nem avaliar a pertinência do meu ato, entrei e me dirigi à mesa dos dois.
No caminho, flagrei um sorriso no rosto de Domênica. E uma gargalhada nos lábios finos do senhor que a acompanhava.
— Espero que as crianças não tenham ficado sozinhas! — disparei.
Domênica, com uma elegância no trato que ainda mais me irritou, ergueu os olhos negros em minha direção, enxugou o canto da boca e anunciou:
— Senhor Aparício, esse é meu ex-marido, o senhor Ferreira das Mercês.
E, sem esperar, ela complementou:
— Senhor Ferreira, apresento-lhe o senhor Aparício, meu dileto amigo.
Sem me dar conta de que estava em ambiente público, elevei ainda mais a voz e devolvi:
— Sim, Aparício. O velho Aparício! Não o tinha como caçador de mulheres desamparadas. Espero que não esteja apresentando a ela suas manias e rabugices de homem solteiro, muito menos desfilando seu surrado rosário de filosofias tupiniquins, retiradas do último almanaque de autoajuda.
O restaurante todo caiu num silêncio de expectativa. Algo que ocorre quando os presentes percebem que um barraco está prestes a se dar.
Domênica baixou a face, fez um muxoxo de incômodo e serviu o Aparício de mais uma xícara de chá.
— Obrigado, querida! O chá é sempre um bálsamo para as horas mais difíceis — provocou-me, fingindo não dar mais pela minha presença.
O ciúme tomou-me o juízo e me levou ao desatino.
— Não deixe esfriar, seu Aparício! Saiba devolver a cortesia da dama — disparei, tomando-lhe a xícara e derramando o conteúdo na sua boca. Enquanto ele se engasgava, eu lhe abria os lábios e forçava-o a ingerir tudo.
Domênica irritou-se e ordenou a minha expulsão do ambiente:
— Senhor maître, ponha este sem-vergonha para fora. Ele está nos incomodando.
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— Sem-vergonha! Isso não! — reclamava cá comigo.
Nesse exato momento Gervásia se aproximou de mim. Sentou-se ao meu lado e me pediu para relatar o que tanto me contrariara.
Procedi ao relato completo, aquilo aliviava a minha fúria. De quando em quando fazia uma pausa para disparar:
— Sem-vergonha? Isso não! Nunca fui tratado assim.
Quando concluí toda a narrativa, Gervásia levantou-se e foi à mesinha de chá. Enquanto se servia, notei-lhe as mãos trêmulas. E, com a voz rascante:
— Seu sem-vergonha!
*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.
clauderarcanjo@gmail.com
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