Dia desses, durante o asseio matinal, me dei conta de algo gravíssimo: o tubo de pasta de dentes estava quase vazio. Na “peinha” de nada. No armário do banheiro, nenhum de sobressalente. Com preguiça de me dirigir até o departamento doméstico de produtos para higiene pessoal, me pego a esfregar o cabo da escova no tubo de pasta, em busca dos últimos resquícios do precioso produto. Quem nunca? Enquanto realizava essa operação há muito em desuso, veio-me à mente aqueles antigos tubos de pasta feitos de uma liga metálica (alumínio + estanho), que de tanto a gente raspar em busca da última porção do dentifrício, largava a pintura. E aquele invólucro medieval e de alta periculosidade, enferrujava! O incauto usuário corria sério risco de ingerir ferrugem e arranjar uma grave inflamação no esôfago ou cortar um dedo e ser vitimado pelo tétano. Que vida insalubre! Que grande invenção da humanidade foi o tubo de pasta feito de plástico!
Escarafunchando cuidadosamente o tubo na busca do último “tantinho” de creme dental, viajei no tempo e comecei a me lembrar de algumas coisas que transformavam a nossa meninez na antiguidade, em uma verdadeira batalha pela sobrevivência.
Quando criança, piolhos e lêndeas eram tratados com a aplicação direta no couro cabeludo de um veneno chamado Neocid. Quem nunca ouviu aquele barulhinho “plac, plac, plac” enquanto o pozinho maligno se espalhava por entre os cabelos não imagina a aventura de se viver, que era ser criança no final da década de 60 e durante a de 70. Aquele “talquinho” fedorento causava problemas respiratórios e podia provocar o amolecimento do couro cabeludo e o enfraquecimento dos miolos.
Se 90% da população adulta brasileira – quiçá mundial – na faixa dos 60, sofre com refluxo gastroesofágico e tem instalada em seu intestino a tal bactéria Helicobacter pylori é porque quando pirralho(a) tinha como lanche tradicional Ki-Suco, Q-Refresco, suco de “tamarina” e “quetais” acompanhado de broa, tapioca, orelha de pau, tareco, cuscuz, etc. Os primeiros sintomas de azia surgem na infância e já está cientificamente comprovado (pesquisa minha) que quem fez uso dessa bomba gástrica durante a puerilidade da vida está seriamente ameaçado(a) de adquirir uma úlcera antes dos 14 anos. E o que dizer do almoço de “fussura” de porco acompanhada de pirão de gordura que os fedelhos comiam de se lambuzar? Os colesteróis e os triglicerídeos fazem a festa até hoje. Sobremesa? Açúcar com farinha. Bem vindos glicoses e carboidratos. “Mãe! Essa comida tá ‘pia’. Não tem quem coma”. “Besteira menino. Hoje eu errei a mão. Um pouquinho de sal não faz mal a ninguém”. Muito prazer senhoritas sistólica e diastólica.
As brincadeiras de rua também não eram lá muito salutares. Quando morei na Av. Alberto Maranhão em frente à praça do Mercado Novo em Mossoró, acontecia em dia marcado com antecedência (e não precisava de zap ou instagram) uma guerra de pedras entre os bairros do Alto da Conceição e Pereiros. Dessa “brincadeira”, os mais novos com idade entre 10 e 11 anos – tipo eu – não participavam e eram substituídos por irmãos mais velhos. Como eu não tinha irmão mais velho, nessas noites bélicas não colocava os pés na rua nem pra ganhar dinheiro. Mamãe perguntava logo se eu estava doente e papai quando percebia meu estado “borocoxólico” já me empurrava goela abaixo duas “lapingochadas” de Emulsão Scott, um instrumento de tortura muito usado pelos pais naqueles tempos. Óleo de fígado de bacalhau! Ô troço ruim da mulesta! Quanto a batalha campal, ainda bem que a distância entre os dois “exércitos” era de uns 300 metros e os “guerreiros” não eram muito bons de pontaria. Aqui e acolá aparecia um “ferido” com um galo na testa, que era exibido como um troféu de guerra entre toda a “estupefacta” e orgulhosa tropa.
Jogar bola no meio da rua não era para os fracos. Arrancar um “chamboque” do dedão do pé no calçamento era comum entre os destemidos atletas infantis. E nada de abandonar o jogo. Tinha que permanecer até o fim jogando com o pé apoiado no calcanhar. Pense numa pereba horrorosa que se formava quando aquilo inflamava! E ainda tinha que ir para a escola com um pé no conga e outro no chinelo. Joelho esfolado? Bobagem. Todo herói carrega pelo resto da vida suas cicatrizes nas articulações sinoviais.
Dentre as brincadeiras de jogo de bola no meio da rua, havia uma de altíssima periculosidade: resta um. Nada a ver com aquele joguinho inocente de tentar deixar apenas uma peça sobrando num tabuleiro plástico cheio de furos em formato de cruz. Era o seguinte: o mais velho ia para o gol (as traves eram uma das portas do Mercado Novo) e os demais – nunca menos de 20 – tinham que ficar correndo atrás da bola tentando fazer um gol. Quem alcançava a façanha se retirava do jogo e assim continuava até restar apenas um. Prêmio do infeliz: atravessar um corredor polonês levando cocorote no “cucuruto” de todos os outros jogadores.
Jogar bola no meio da rua também era um caso de polícia. Em alguns dias durante a peleja noturna, aparecia do nada um opala preto fazendo ronda em nossa região e avançava na direção dos distraídos “peleiadores”, quase atropelando todo mundo. Depois de muitos sustos ficou estabelecido que antes do início de cada jogo de bola, um garoto da turma seria sorteado para exercer a função de “pastorador” do carro preto. E não adiantava estrebuchar. Regras de turma são regras de turma e existem para serem acatadas. Ao grito de: “lá vem o carro preto”, a correria era grande e não sobrava um no meio da rua pra contar a história. Rezou a lenda àquela época, que em outra rua próxima a nossa, uma turma desprevenida – não adotou o “pastorador” – foi atropelada e alguns dos seus integrantes foram parar no hospital.
Bons tempos aqueles! E apesar de sequelas de várias espécies, ainda estou por aqui.
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