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No leito de morte

— Há dias sem se alimentar? — indagou o médico.

O paciente com os olhos fundos, a respiração fraca, a pele numa cor baça.

— Sim, doutor. Ele não aceita nada. A boca cerrada.

O quarto em penumbra, como se a combinar com o quadro de tristeza que cercava Domênica Melgaço, a esposa fiel, sempre vigilante.

Com pouco mais, a entrada das crianças, Telzinho e Belinha, ladeadas pela vizinha.

— Aqui estamos, Domênica. Você nos chamou? — inquiriu a vizinha, dona Gildinha.

— Fi…lhos? Telzi…nho?… Be…linha?

— Ô, paizinho! Estamos aqui. Não faça muito esforço…

A voz do garoto, embargada pela emoção, fez com que Ferreirinha tentasse se levantar da cama, mas as forças não foram suficientes para aquela intenção.

Ele, então, pediu que Telzinho e Belinha o ladeassem, a recolher a mão de cada um e mantendo-as sobre o tronco magro. Em seguida, confidenciou-lhes:

— Perdoem-me, nunca fui um pai… à altura… mas… filhos… a vida… sabe?

A testa tomada pelo suor, o corpo em febre, inquieto. De repente, um desmaio. Domênica afastou depressa os dois filhos e tomou a mão do marido. Não sem antes gritar pela intervenção do doutor Artur Arcanjo:

— Pelo amor de Deus!

Com muita calma, doutor Artur se aproximou, enquanto sinalizava para que dona Gildinha levasse as crianças. A seguir, tomou do estetoscópio e auscultou o peito magro do convalescente.

O choro de Domênica era mais forte do que os batimentos cardíacos do paciente.

— Chamem o padre Araquento. O quadro é crítico.

&&&

Sete meses depois.

— A senhora se consolou como?

— É difícil de explicar, Gildinha. Tem dias mais difíceis, horas nas quais eu revisito tudo e nem sei como tive forças para suportar aquela minha decisão.

A mesa de chá ao centro, duas xícaras sob a pequena bandeja. Testemunhas únicas daquela conversa de final de tarde.

Gildinha baixou a vista e resolveu quebrar novamente o silêncio:

— Foi tudo por amor, Domênica?

Domênica olhou para as próprias mãos trêmulas e, sem nenhuma peia, deixou-se levar pela corrente de lembranças:

— Ferreira fez todo esforço, bem sei. Queria restabelecer nossa vida normal, cuidar de mim e dos seus filhos. Viver como se nada nos tivesse acontecido, mas…

— Se não quiser falar, amiga, saberei entender.

— Não, será melhor para mim. Há meses isso me engasga. Invade minhas noites, assanha meus pensamentos. Será bom botar tudo para fora. Como eu lhe dizia, amiga, ele tentou levar uma rotina como a de antes. Procurou emprego, trabalhou pesado, seguiu à risca as obrigações de homem sério, respeitador, bom pai, digno esposo. Aos sábados, levava as crianças para o parque. Aos domingos, depois da missa, geralmente se confessava com o padre Araquento. No entanto, eu percebia que tudo era, como posso dizer, difícil para ele, a exigir-lhe cada vez mais esforço, a roubar todas as suas energias… e foi o que vimos. Ele prostou-se, extenuado, como se a vida não lhe…

— Chorar sempre é uma forma de desabafar, amiga Domênica. E você, naquele dia em que o padre Araquento entrou para a extrema-unção, percebeu que…

— Sim, ou melhor, um pouco antes eu diria. Lembra-se de que chegaram as outras três, minutos antes?

— Lembro. Claro que me lembro da cena! Até hoje eu não sei, amiga, quem as chamou.

Domênica Melgaço levantou os olhos para o teto, respirou fundo, a enxugar a face, antes de responder:

— Fui eu.

— Você? Como, amiga…

Domênica abriu os braços e disparou em tom choroso, revoltada:

— Sabe quando se percebe que a fidelidade de um homem pode ser a sua morte? Você não me entende, Gildinha, me entende? Quando coloquei meu esposo para fora de casa, parece que o levei a conhecer outras vidas, a mostrar-lhe novos mundos… eu que estava a me preocupar apenas com a nossa condição financeira.

— Não estaria você, comadre, se responsabilizando por coisas que não estão, nem nunca estiveram, sob o seu domínio?

— Pode até ser, Gildinha, porém eu tive que tentar. A morte dele me seria dura demais. Com as três mulheres no quarto, soprei a informação nos ouvidos dele, e percebi um rubor na sua face, antes tão lívida. Quando o padre Araquento chegou com os paramentos, Gildinha, concluí que a extrema-unção não mais seria necessária. Era só dar tempo ao tempo, e, no meu caso… sair de vez da vida de José Ferreira das Mercês.

&&&

As duas caminharam até o portão da casa. O passaredo já a ocupar os benjamins de Licânia, anunciando mais um crepúsculo na província.

— Muito obrigada por me ouvir, Gildinha.

As amigas se abraçaram fortemente, enquanto o relógio da Matriz anunciava a hora do ângelus.

*Escritor e editor, autor dos livros O Fantasma de Licânia, Mulheres Fantásticas, entre outros.

clauderarcanjo@gmail.com

Escrito por Clauder Arcanjo

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