Em março de 1987, não se falava em greve de bancos privados no meio bancário mossoroense. O simples fato de comparecer a uma assembleia servia como motivo de advertência ou até demissão. Após cinco anos como escriturário no Banorte (hoje Banco Itaú), eu acabara de ser promovido a Chefe de Setor. Era responsável pelo setor administrativo/contábil da agência, que inclua a compensação de cheques (o grande nó do serviço bancário à época), fechamento contábil, cobrança e parte do atendimento. Já casado, minha filha mais velha, Isadora, tinha 8 meses.
A categoria dos bancários já vinha de algumas greves bem sucedidas nos anos 80, porém, os movimentos se restringiam às principais capitais e algumas grandes cidades do país, onde a categoria era forte e tinha maior poder de mobilização. Em uma cidade como Mossoró, estava completamente fora de cogitação se pensar em fechar alguma agência de banco privado por motivo de greve.
Mas algo aconteceu naquele longínquo 1987. Com a aceleração da inflação, os bancários viram o seu poder aquisitivo despencar. O resultado foi a primeira grande greve nacional fora da Campanha Salarial, que acontece em setembro. Conhecida como “Bola de Neve”, devido ao crescimento diário de adesões, a paralisação atingiu 80% da categoria.
A greve foi decidida no dia 14 de março de 1987 no Encontro Nacional dos Bancários, em Campinas/SP e a partir daí as assembleias locais se sucederam. A participação de bancários do setor privado nessas assembleias em Mossoró, começou muito tímida. Mas embora sofrendo a pressão dos gerentes das agências (gerente de banco privado nunca se acha funcionário igual aos outros, até o dia em que é demitido), aos poucos essa participação foi crescendo.
No dia 24 a greve foi aprovada e marcada para começar no dia seguinte. A pergunta: “quem vai fechar amanhã?” marcou o encerramento da assembleia. Os representantes do Banco do Brasil, Banco do Nordeste, Caixa Econômica e Bandern (banco estadual) garantiram fechar as agências espontaneamente, sem necessidade de grandes piquetes. Então chegou a vez dos bancos privados. Bradesco e Itaú, como sempre, não tinham representantes. Quando perguntaram sobre o Banorte, eu respondi: “nós fechamos”. Todos me olharam com cara de espanto. Os meus colegas de banco presentes questionaram: “mas Túlio, como é que você garante que fecha? Como é que a gente vai fazer isso?”. “Terminar aqui a gente decide”, respondi. Os representantes do Banco Econômico e do Banco de Mossoró também se manifestaram: “talvez a gente precise de piquete pra fechar”. Ficou acertado que os funcionários de um banco fariam piquete em outro. A turma do Banco do Brasil encarregou-se de ir para o Banorte.
Após a assembleia, nos reunimos (eu e mais uns dez “banortistas”) e decidimos que quem não quisesse participar dos piquetes deveria ficar em casa. E após muita insistência, ainda conseguimos convencer – indo na residência ou por telefone – mais alguns que não participavam das assembleias a não ir trabalhar no dia seguinte. A nossa estratégia seria não permitir o acesso de qualquer pessoa a agência. Funcionário ou cliente. Os funcionários começavam a chegar por volta das oito horas e a agência abria ao público a partir das dez. Seis horas, ainda quase sem movimento na rua, eu e mais uns três companheiros chegamos na agência e entupimos a fechadura, os ferrolhos e as dobradiças da porta principal com superbond.
Quando os funcionários que não aderiram à greve começaram a chegar para trabalhar, não conseguiram entrar porque a porta não abria. Os “piqueteiros” conseguiram convencer alguns a voltar para casa explicando que a greve era nacional e irreversível. Quando o quadro gerencial começou a chegar, a movimentação do lado de fora da agência já era grande. Mas com o passar do tempo a maioria dos clientes e curiosos que se aglomerava à espera da abertura do banco começou a se dispersar. Só conseguiram abrir a porta depois das 11 horas e a agência ainda conseguiu funcionar precariamente nesse dia e nos seguintes. Os gerentes e alguns chefes de seção fura-greves, passaram a receber dos grandes clientes, depósitos e pagamentos em dinheiro e em cheques sem nenhum registro nos caixas e na tesouraria. O pós-greve no Banorte Mossoró foi um verdadeiro caos contábil. Mas isso já é outra história.
Final do expediente bancário, era a hora de nos dirigirmos a AABB (Associação Atlética Banco do Brasil) para a primeira assembleia de avaliação do movimento. O saldo, apesar de alguns pequenos tumultos, foi positivo. As agências dos bancos estatais fecharam sem problema, o Banco Econômico e o Banco de Mossoró aderiram à greve sem maiores contratempos e os grevistas do Banorte mereceram aplausos por sua ousada tática grevista. Como já era de se esperar, Bradesco e Banco Itaú abriram as suas agências normalmente. Foi assim em quase todo o Brasil. A estratégia para os dias seguintes, portanto, seria concentrar todos os piquetes nessas duas agências. Nós, os grevistas do Banorte de Mossoró, já havíamos feito a nossa parte. A ordem agora era participar dos outros piquetes.
Por morar próximo ao Itaú, fiquei no comando desse piquete. Na época, eu e alguns amigos tínhamos uma charanga (ou batucada) e os instrumentos de percussão ficavam guardados em minha casa. Surdo, tarol, tamborim, reco-reco, ganzá e outros badulaques mais, que bem tocados ou não faziam um barulho desgraçado. No dia seguinte, logo cedo, lá estávamos nós, os “piqueteiros do samba”, na calçada do Itaú “armados” com os nossos instrumentos, formando uma espécie de corredor polonês e batucando no “pé do ouvido” de quem passava pela porta. Não conseguimos impedir o acesso dos funcionários ou fechar a agência, mas fizemos uma balbúrdia da “mulesta” durante todo o período do expediente. Quando já estava indo embora, o gerente da agência (amigo de cerveja nos fins de semana) veio falar comigo: “Túlio, rapaz. Isso não é greve. É baderna. Amanhã tem de novo?”. “Tem. Até vocês fecharem”, respondi. E assim o Itaú seguiu funcionando com muito batuque na moleira dos envolvidos.
Ao chegar em casa por volta das 21 horas, após a assembleia na AABB, recebi a desagradável visita de um gerente do Banorte. Minha esposa, Maria José, com o nosso bebê nos braços, assim que abriu a porta falou logo assustada e preocupada: “Pronto Mô! Vai ser agora que você vai perder o emprego. Que é que a gente vai fazer?”. O sujeito, também amigo de cerveja nos fins de semana, foi logo falando: “Túlio, já vou avisando. A história que você é um dos líderes da greve, já chegou na gerência regional (em Natal). Você acabou de ser promovido e se não voltar ao trabalho amanhã vai ser demitido”. Eu, doido para tomar um banho e relaxar depois de um dia agitadíssimo, fui curto e grosso: “Volto não. Façam o que quiser. Mas lembre-se que você também será beneficiado com tudo o que a gente conquistar com a greve”. E o movimento que agitou a cidade de Mossoró naqueles dias de março e abril de 1987, prosseguiu em meio a protestos dos que se sentiam prejudicados e adesões dos que viam legitimidade nas reivindicações dos bancários.
Com nove dias de greve, os funcionários do Banco do Brasil conquistaram um reajuste de 30%, fecharam o acordo com o banco e resolveram abandonar a paralisação. Na mesma assembleia em que foi feito esse anúncio, ficou decidido o fim da greve dos bancários em Mossoró. No dia 02 de abril os bancários grevistas de Mossoró voltaram ao trabalho. A greve nacional nos bancos privados, que começou com adesão parcial da categoria e sustentou-se com o apoio dos piquetes dos funcionários dos bancos estatais e estaduais, foi suspensa definitivamente no dia 06 de abril de 1987 sem nenhuma conquista efetiva. Os bancários dos bancos estaduais e privados saíram da greve com a sensação de terem sido traídos pelos bancários do Banco do Brasil. Mas essa também é outra história.
Relatos de uma greve
- Fim do expediente, os grevistas se reuniam na Praça do Pax e caminhavam para a assembleia na AABB (no início do Alto de São Manoel) atrás de um carro de som que tocava sem interrupções a música “Gritos de Guerra” sucesso do Chiclete com Banana: Vou caminhando entre flores e guerras/Vou deslizando entre o bem e o mal/Um pouco louco entre monstros e feras/Sou cavaleiro do juízo final…. Até hoje o “grito de guerra”, Ê ô ê ô aiaiaiaiai/Ê ô ê ô aiaiaiaiai/Ê ô ê ô aiaiaiaiai ôôô martela na minha cabeça.
- Os piquetes no Bradesco foram tensos. Nos dois primeiros dias, alguns grevistas disfarçados entravam na agência e jogavam cigarros “temperados” com os terríveis “peidos-alemães” nas caixas de areia onde as pessoas escarravam (eca!) e jogavam pontas de cigarros (acreditem, nos anos 80 essa coisa gasturenta ainda existia). Quando os cigarros começavam a queimar, a fedentina tomava conta do ambiente e alguns funcionários de narizes mais sensíveis eram forçados a sair da agência. Quando os gerentes perceberam a artimanha, passaram a proibir a entrada de qualquer pessoa que não fosse identificada como cliente ou funcionário e a polícia foi chamada para formar um cordão de isolamento na porta do banco.
- Durante os nove dias de greve não tirei a barba. Fiquei parecendo Che Guevara de cabelos encaracolados. Quando cheguei em casa após a assembleia que decidiu pelo fim da greve, a primeira providência foi ficar de cara lisa e no dia seguinte fui trabalhar com a cara mais lisa ainda.
- No final da assembleia fatídica pedi a palavra e fiz um discurso baixando a lenha nos funcionários do Banco do Brasil. Nenhum deles presentes no local teve coragem de retrucar. Acabei chorando e fiz mais um “bocado” de bancários chorar também.
- Após as assembleias sempre rolava uma cervejinha, que ninguém é de ferro. Certa noite, munidos dos instrumentos de percussão, fomos para um barzinho e começou a rolar um sambinha (Vai passar nessa avenida um samba popular…, Eu fico com a pureza da resposta das crianças…, Apesar de você amanhã há de ser outro dia…) cantado às alturas. O tempo foi passando e o dono do bar (nosso amigo) começou a se incomodar e pedir, sem sucesso, para a gente parar com a “zuada”. Alguém chamou a polícia. O nosso amigo dono do bar até hoje jura de pés juntos que não foi ele. Chegaram cinco policiais. Os cinco estavam no cordão de isolamento na agência do Bradesco. Quando nos viram, um deles não se conteve: “Vocês de novo?!” e começou a rir. “Vieram no cheiro, só pode!” comentei. Era a hora de encerrar os trabalhos etílicos e ir cada um para a sua casa.
- Certo dia no piquete do Banco Itaú, dois funcionários fura-greves do Banorte vieram falar comigo. Um deles era recém-contratado e estava em treinamento no setor de cobrança. Foi o novato quem falou: “Túlio, o gerente resolveu lhe dar mais uma chance. Se você for trabalhar agora, não será demitido”. Eu respondi: “eu não vou ser demitido e quando eu voltar você será meu subordinado. Aí é você que vai ser demitido”. Ele se assustou e foi embora. O outro, eu consegui convencer a aderir à greve. Por incrível que pareça, quase 30 anos depois eu encontrei o tal novato como caixa na agência da Prudente de Morais (em Natal) do Banco Itaú. Nos reconhecemos, nos cumprimentamos, conversamos um pouco sobre a vida, mas eu não resisti: “e você, ainda continua muito ´babão` de gerente?”. Ninguém conteve o riso na bateria de caixas.
- Ah! Nenhum dos grevistas do Banorte foi demitido ou punido. Esse “milagre” está relacionado ao pós-greve do Banorte e o “caos contábil” citado anteriormente. A condição para virarmos a noite trabalhando (sem receber hora extra) para colocar ordem na contabilidade da agência, foi o compromisso assumido por escrito pela gerência regional do banco de não punir ninguém. Em 1989 surgiu uma oportunidade melhor de trabalho e eu propus ao banco uma demissão por acordo para não ficar com o FGTS de quase dez anos bloqueado. Não aceitaram e acabei pedindo demissão.
- Não citei o nome de nenhum personagem envolvido nessa narrativa (exceto o de minha esposa e minha filha), para não ferir suscetibilidades.
- Se alguém entre os meus milhões de leitores vivenciou o evento aqui narrado e percebeu alguma divergência ou deseja acrescentar algum fato novo, por favor se manifeste.
- Setembro de 1987, data base de negociação da categoria dos bancários passou em branco em Mossoró. Pelo menos entre os bancários dos bancos privados. Mas enfim! 1987 foi um ano muito “fodástico”. Foda + fantástico.
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