Por Natália Chagas
E das grandes paixões, implodiu seu coração. Foi assim que as meninas descreveram o nascimento, renascimento e mortes várias de Lilly. Nome certo em sigilo, história reconhecida em toda região. Marca inconfundível de seu batom Cherry, dizem os rumores que havia saído de linha, então ela foi à São Paulo e convenceu o dono de produzi-lo novamente. Não havia nada que ela não conquistasse, nem ninguém. Mas a história que mais me impressionou desde quando cheguei à cidade foi a que vou lhes contar.
Entrei no velório de Lily com respeito e gratidão. Vim morar nesta cidade, designado por concurso público, mas entendi de imediato que sua população não aceitava estranhos. Vim sozinho para arrumar as coisas primeiro, deixei mulher e 2 filhos na casa da sogra com promessa de ir buscá-los. Mas Lilly foi quem me ajudou em absolutamente tudo. “Sem nada em troca” – dizia ela. E realmente, nunca me pediu nada. No foyer, éramos obrigados a deixar casacos e armas, se tivéssemos. Deixei meu casaco com Flor, já que nunca portei armas. Ao abrir a porta para o salão, o forró estava solto com várias pessoas dançando em torno do corpo de Lily que deitava em seu caixão com aparência quase feliz, eu diria. Era um semblante de gente que viveu sem medo e morreu sem arrependimento. Quase a invejei. Era impressionante o respeito dos dançantes em torno do caixão. Eles rodopiavam todo o salão no agarradinho de seu par sem triscar ou ameaçar o descanso da defunta.
Gente entrando, gente subindo para os quartos, gente dormindo no canto atrás da banda, gente bebendo e rindo, gente chorando e lastimando a perda, mas nenhuma gente saindo. Eu sentei no balcão e iniciei minha rotina que irritava tanto Lilly, bebia até o ponto de sorrir das bobagens alheias e ir embora, nunca subi. Naquele dia, iria quebrar com uma daquelas rotinhas, beberia além da conta. Sentei ao lado de Duvaldo, o barbeiro, que era o melhor ponto para saber de tudo que acontecia ali e o que ninguém ainda estava sabendo que aconteceu e ainda o que estava por vir. Ele, que já estava bem alegrinho, me iniciou com tudo que já havia acontecido até ali desde a hora do almoço.
Meia hora depois, entra um homem sem o olho esquerdo, o ouvido direito, a perna esquerda e a mão esquerda em cima de uma muleta e para todo o esquema de despedida. A banda parou, as meninas saíram dos colos de seus benfeitores, os homens seguraram seus copos. Eu olhei para Duvaldo sem saber, ele, quase instintivamente balbuciou: “´Jesus, é Honorário!”. Arregalei meus olhos de volta ao homem por não acreditar que a lenda era viva.
Honorário era o marido de Lilly, quando ela tinha o antigo nome, que não podemos pronunciar a pedido dela – tenhamos respeito. Ele começou:
— Mulé, tô aqui. te falei naquele dia que cê me deixou na cama sem o zói, a urêia, a mão e o pé, e mais uma coisa que cê me tirou que não quero admiti na frente de todo mundo, que eu ia te interrá. Tô aqui, mulé. Tô aqui pra duas coisa, 1 pra interrá ocê, 2 pra pedi pra voltá pra mim. Ô, genti, deix’eu levá o corpo dela pra mim. Num tenho muita coisa, mas tenho meu amô por essa bicha que num tem mais fim. Fica ocêis com o caixão fechado e a alegria de tê vivido perto dela, e deix’eu levar o corpo pra vivê cumigo.
Aquele senhor, que mais parecia um zumbi de filme, se prostrara de joelho e cotoco no chão em um choro tão doído, que ninguém no salão escapou dos olhos embargados, eu inclusive. Ele parecia um poço de dor e solidão aprisionado pelos últimos vinte anos.
Zenaide, a oficial herdeira da casa e melhor amiga de Lilly, sabia de absolutamente tudo sobre a mulher do momento, sua vida inteira, desejos e vontades. Ela contava que Honorário prendeu a esposa em um quarto por quinze dias, e a estuprou 3 vezes ao dia, dando-lhe apenas pão velho embebido no leite 1 vez ao dia para comer, após pegar a danada cumprimentando o médico da cidade. Havia a alegação de que ela havia ido àquele mesmo doutor nas últimas semanas por uma possível gravidez. Honorário não quis saber. Sua honra estava manchada. Ao passar daqueles dias de castigo, calmamente, a esposa, em silêncio, foi retomando suas forças, sempre obediente ao marido, mostrando-lhe gratidão por tê-la mantido viva. Ele retomou sua confiança como o homem que manda na casa. Um dia, ao chegar da roça, ele tropeçou em um fio instalado na porta de entrada, ela, imediatamente, o amarrou e o pôs na cama. Pelos próximos quinze dias, ela, delicadamente, tirou um pedaço dele. Seguia a orientação do livro que havia roubado do doutor em sua última visita após a retirada do filho morto no útero para que o desgraçado pudesse viver enquanto ela quisesse. Apenas ignorou o capítulo sobre anestesia.
Ela fez sua mala com aquele resto de homem deitado na cama lhe xingando e lhe jurando amor eterno e foi fazer a vida de Lilly.
O suspense era grande, já que Zenaide pediu uma reunião com o prefeito e o delegado no privado do escritório. Os três saíram de lá resolutos. E o prefeito disse:
— É preciso ser feito a vontade de qualquer morto. Nós vamos continuar nossas homenagens. Tampe o caixão. Você fique com o corpo, nós ficamos com o espírito de Lilly. Toca a banda que o sol não nasceu ainda.
Honorário e seus homens carregaram o corpo, fecharam o caixão, eu bebi até o sol nascer porque o espírito de Lilly também fervia dentro de mim.