Por Clauder Arcanjo
— Não! Não faça isso com ele! Ô, meu Deus…
A voz de Creuza, como se um pouco distante, misturada com um choro forte, me chegava embaciada pelas terríveis bordoadas dos cassetetes que eu recebia.
Quase desacordado, ainda tive tempo de ouvir a ordem de um dos guardas:
— Vamos, toca, toca! Este homem é perigoso.
Fui jogado na caçamba de um jipe. O carro arrancou, e a minha cabeça bateu em algo firme, o que me levou ao desmaio.
— Vamos… toca!
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— O que houve aqui, gente?
Das Dores entrou no casebre e encontrou Creuza em desespero.
— Ô, minha amiga! Ô, amiga!… Levaram ele, debaixo de uma surra animal; não entendi por quê. Ninguém me deu nenhuma explicação. A polícia, a polícia…
E nada mais Creuza conseguia falar, tomada pelo choro convulso, o cabelo em desalinho. Ao seu lado, tentando conter-lhe a agonia, a presença de uma das vizinhas.
— Tudo tem que ter uma explicação. Terá que ter! — disse Das Dores, transmitindo uma certeza de que o seu olhar baixo não dava garantias.
Pouco depois o ambiente no casebre mergulhou num silêncio fúnebre.
Das Dores preparou um chá para Creuza, que ela recusou decidida.
— Não quero me acalmar. Não quero! — declarou, enxugando a face sofrida.
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Os intensos sacolejos da viatura, sem livrar os buracos na estrada de terra, levaram-me a despertar. Quando abri os olhos inchados, percebi que estava entre vários samangos.
“De novo, tudo de novo. A prisão, o julgamento. Os depoimentos, a voz enjoada do promotor, na tentativa de me fazer apodrecer na prisão. De novo, tudo de novo.”
Não sei se emiti alguma palavra, mas senti uma estocada do cassetete do samango mais próximo.
— Fique quieto. Nem se meta a besta.
Com as mãos e os pés algemados, ainda me deu vontade de lhe dizer: “Covarde, só é valente assim”. Engoli o cuspe grosso, entregando-me ao destino que me aguardava.
“Devia ter vindo para junto deles, no reino dos mortos. Mas intercederam por ele, sem merecer…”
— Hein?!… Quem está…
— Fique calado. Não se meta a besta, não se meta!
O trepidar da viatura na buraqueira da estrada. “Tudo foi sonho; agora, o inferno, a vida real: prisão, novo julgamento, promotor, testemunhas… Condenado!”
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O lugarejo fervia com os comentários:
— Sempre achei o jeito dele meio esquisito!
— Quem foge sempre deve!
— Pessoal, não julguem. Vocês estão parecendo com aquelas velhas fuxiqueiras. Vamos respeitar o sofrimento de Creuza. A coisa vai se aclarar, eu sei!
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Na manhã seguinte, a decisão de Creuza:
— Não vou ficar aqui parada. Vou atrás dele.
O arrepio de Das Dores:
— Mas, minha querida, você sozinha ir para a cidade. Sabe que lá é tudo diferente. Sabe que…
— Eu prometi a ele que nada de mal ia lhe acontecer, e isso não me sai da cabeça. É como um ferrão, entende, a me cobrar uma atitude. Sem falar que eu lhe garanti que sempre estaria ao seu lado — disparou Creuza, num tom de quem não admite contestação.
— Eu… vou rezar por vocês. Que Nossa Senhora guie os seus passos e mantenha o mal distante do caminho dos dois.
Abraçaram-se. Antes de Creuza ganhar a estrada, Das Dores pediu que ela esperasse. Saiu e voltou rápido.
— Pegue, você vai precisar. É pouco dinheiro, mas é tudo que eu tenho. E outra coisa: chegando em Licânia, procure o seu Zequinha Arcanjo. Ele é meu compadre. Um homem bom que pode lhe ajudar, caso precise. Pode falar em meu nome.
— Obrigado. Cuide das minhas coisas até eu retornar. Com ele, pode ter certeza.
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No final da tarde, Creuza entrou em Licânia. Seguiu direto para a cadeia.
O delegado autorizou que Creuza visse o preso, porém distante, longe das grades.
— Você não devia ter vindo. Isto aqui não é lugar para…
Creuza sentou-se num tamborete, acompanhada pela vigília de um dos soldados.
— Trouxe uma paçoca feita com carne-seca. Você precisa, não pode ficar sem se alimentar.
Quando ela fez menção de lhe passar a boia, o soldado informou que tudo seria inspecionado. Tomou das mãos da visitante a refeição e dirigiu-se à saleta contígua.
— Você não devia ter vindo.
— Saiba, e já deveria me conhecer depois do nosso convívio, que não sou mulher de abandonar meu companheiro.
Aquela expressão, “meu companheiro”, fez com que o detento baixasse a cabeça, como se recebesse uma estocada profunda.
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No início da noite os sinos da Matriz de Sant’Anna convidavam os cristãos para a missa das seis. Creuza entrou na nave e se ajoelhou diante da imagem de Nossa Senhora.
Ela assistiu à missa. Ao final, resolveu se confessar.
Padre Araquento ouviu os supostos pecados daquela mulher, mais se abençoando do que abençoando-a.
— Filha, filha… Não! Não faça isso.
A noite caiu em Licânia: um céu sem estrelas, com o passaredo inquieto por entre a galharia das algarobas e dos benjamins da cidade.