Com quatro anos de atraso, finalmente Chico Buarque recebeu das mãos do Presidente Lula e do Presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Souza, o seu Prêmio Camões, a maior honraria da literatura em língua portuguesa. Agora Chico está definitivamente “camonizado”.
Em trecho do seu belíssimo discurso de agraciado, o gênio Chico fez uso do sarcasmo que lhe é peculiar, para manifestar a sua “enorme euforia” ao sentir-se liberto de tudo de detestável e sinistro que aconteceu no Brasil durante os nefastos quatro anos sob o desgoverno bolsofascista:
“Hoje, porém, nesta tarde de celebração, reconforta-me lembrar que o ex-Presidente teve a rara fineza de não sujar o diploma do meu Prêmio Camões, deixando seu espaço em branco para a assinatura do nosso Presidente Lula. Recebo este prêmio menos como uma honraria pessoal, e mais como um desagravo a tantos autores e artistas brasileiros humilhados e ofendidos nesses últimos anos de estupidez e obscurantismo”.
Chico Buarque também citou a Revolução dos Cravos, consumada em 25 de abril de 1974 e que pôs fim ao regime ditatorial salazarista que perdurava desde 1933:
“Valeu a pena esperar por esta cerimônia marcada, não por acaso, para a véspera do dia em que os portugueses descem a avenida Liberdade a festejar a Revolução dos Cravos”.
Se o mês de abril é tão significativo para a democracia portuguesa, no Brasil ele marca o golpe de estado de 01 de abril de 1964 e o início da ditatura militar.
Foi também em um abril, que essa sanguinária ditatura assassinou Zuleika de Souza Neto, ou Zuleika Angel Jones, ou Zuzu Angel (1921-1976).
Zuzu Angel, se notabilizou internacionalmente não só por seu trabalho inovador como estilista de moda, mas também por sua procura incessante pelo filho Stuart Angel (1946-1971), impiedosamente torturado, assassinado e transformado em desaparecido político pelo estado brasileiro. Zuzu enfrentou abertamente as autoridades militares e escancarou aos olhos do mundo as sessões de tortura, os assassinatos e “desaparecimentos” ocorridos nos porões da ditadura militar do Brasil.
Essa busca por explicações, por culpados e pelo corpo do filho só teve fim com sua morte em 14 de abril de 1976, em um acidente de carro na Estrada da Gávea (Rio de Janeiro), na saída do Túnel Dois Irmãos, hoje batizado com seu nome.
Em 2007, a Comissão Especial dos Desaparecidos Políticos incluiu em seu relatório final, os depoimentos de duas testemunhas oculares do acidente, nos quais afirmaram ter visto o carro de Zuzu Angel ter sido fechado por outro e jogado fora da pista, caindo de uma altura de cerca de cinco metros.
Uma semana antes do suspeito acidente, Zuzu deixara na casa do amigo Chico Buarque um documento que deveria ser publicado caso algo lhe acontecesse, onde escreveu: “Se eu aparecer morta, por acidente ou outro meio, terá sido obra dos assassinos do meu amado filho”.
Em 1981 no antológico LP “Almanaque”, Chico Buarque em parceria com Miltinho do MPB4 (autor da melodia), homenageou a amiga com a obra prima “Angélica”.
Vale a pena lembrar esse brado contra a barbárie que assolou o país durante 21 anos, e que infelizmente voltou a pairar sobre às nossas cabeças a partir do surgimento do bolsofascismo:
ANGÉLICA – Letra: Chico Buarque / Melodia: Miltinho
Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar
Quem é essa mulher / Que canta sempre esse lamento?
Só queria lembrar o tormento / Que fez o meu filho suspirar
Quem é essa mulher / Que canta sempre o mesmo arranjo?
Só queria agasalhar meu anjo / E deixar seu corpo descansar
Quem é essa mulher / Que canta como dobra um sino?
Queria cantar por meu menino / Que ele já não pode mais cantar
Quem é essa mulher / Que canta sempre esse estribilho?
Só queria embalar meu filho / Que mora na escuridão do mar
UMA HOMENAGEM
Nesse abril, em que se completou 47 anos do assassinato dessa mulher extraordinária, símbolo de resistência, resiliência e insubmissão na luta contra a ditadura militar no Brasil, uma homenagem a Zuzu Angel e seu filho Stuart Angel, a partir de uma releitura da letra de “Angélica”:
Os homens maus levaram o seu filho, o pequeno e frágil Stuart. Ela o procurou em todos os lugares. Nunca na escuridão do mar.
O que eles fizeram com o seu pequeno e frágil Stuart? Ela perguntou em todos os lugares.
Ela perguntou aos carrascos. Ela perguntou ao mundo. Nunca aos habitantes da escuridão do mar.
Ela tanto procurou e perguntou, que incomodou os homens maus que haviam levado o seu pequeno e frágil Stuart. E então ela deixou de perguntar e procurar.
De lamentar o sumiço do seu pequeno e frágil Stuart.
Os homens maus quebraram suas pernas. Cortaram a sua língua. Silenciaram o seu lamento.
E ela parou de procurar. De perguntar. De lamentar. Partiu ao encontro do seu pequeno e frágil Stuart na escuridão do mar.
E os homens maus continuaram praticando suas maldades. Agora sem um anjo para procurar e perguntar. E lamentar.