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O bicho homem

Por Natália Chagas

Desde a minha chegada, jamais tinha visto tanta aberração.  Sentei no chão, contra a parede bem no cantinho, impotente só podendo chorar. A revolta subia do estômago ao coração até a garganta, e eu engolia tudo de volta no choro. Os gritos rasgavam meus ouvidos esganiçados de dor, se uniam às risadas dos homens bêbados que se deliciavam a cada estouro.

Comecei a me lembrar quantas vezes as pessoas me falavam que era inútil naquela cidade pequena, com aquela mentalidade tacanha, eu discutir nobreza e misericórdia. “As pessoas daqui são assim mesmo!”, me diziam. Eu ainda lutava contra esse pensamento mesmo sendo motivo para risadas na rua. Agora me dava conta que lutei pouco demais. A arrogância dos homens de sentirem superiores a outros não deixavam que se percebessem iguais.

Por várias vezes, me deparei com um dos mais indômitos seres, Juvenal. Ao ver sua crueldade com uma mãe e seu filhote, confrontei-o com toda minha coragem. Ele se virou contra mim, e os pobres puderam fugir.

– Eu faço o que eu quiser, do jeito que eu quiser! – Disse ele com uma faca na mão.

– Você não fará nenhuma crueldade comigo por perto! Isso, eu juro!

Os olhos deles vidraram nos meus com ódio dilacerante, seu nariz suado quase se encostava no meu, o bafo de cachaça impregnava em minha narina e me deixavam levemente tonta. Mas me segurei firme e o enfrentei até sua saída me jurando vingança.

Por muitas vezes, ganhei as disputas com Juvenal, o que aumentou sua raiva chegando àquela manhã.

Em um dia, eu andava pelas ruas e observei uma certa calmaria no ar. Apenas a pequena Chiclete na calçada a se lamber. Chiclete era uma gata de rua que sempre bebia da água que eu colocava na frente da loja. Deitava ao sol e espreguiçava longamente até que passasse alguém. Para qualquer um, ela parecia sorrir e todos se derretiam e acabavam dando comida a ela. Ela grudava no coração de qualquer um, dizia dona Maria, minha vizinha de frente. Daí a chamamos de Chiclete. Ela apareceu prenha um dia. Já bem barriguda. O cuidado das pessoas aumentou e algumas já disputavam filhotinhos.

Quando caiu a noite, fechei a loja e já saía pelos fundos quando dois homens agarraram meus braços, me levantaram e me levaram até um beco. No meio da luta, reconheci Valdo, que era um dos capangas de Juvenal. Eu gritava e esperneava como louca mas era tudo um grande deserto. Fecharam uma grade na minha frente em que eu podia ver até o outro lado da rua. A imagem de Juvenal crescia ao vir em minha direção, e dizia:

-Já lhe falei que eu faço do jeito que eu quiser. E vou te provar.

Nas mãos, Chiclete com fogos de artifício grudados por todo o corpo.

Não há ser mais cruel do que o que ataca o indefeso para machucar aquele que lhe dá medo.

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