Com base em informações, a polícia prendeu o ignorante e um comparsa. Ambos acusados de assassinar uma pessoa que bebia com eles no final de semana. Morreu afogado o desgraçado, não se sabe o motivo do cruel desfecho. Sem delegacia no interior, os dois acusados foram conduzidos à cidade grande mais próxima e lá foram interrogados à exaustão. Contradições, acusações mútuas, a culpa feita de bola de tênis. Os dois inocentes e culpados na mesma conversa. Mas faltaram elementos probatórios e, ao que se sabe, ao menos um deles foi solto. O ignorante. Cara fechada, poucas palavras, uma sequência desconexa de assertividade racional; semblante de que respondia as coisas sem entender a pergunta. Não tinha antecedentes, mas, nas mãos da polícia, era um lixo de gente que nem deveria estar no mundo. Foi mandado embora.
Some daqui! Disseram a ele.
Mas eu não sei andar nesta cidade, respondeu.
Te vira, para fazer o mal sabe de tudo, para se virar deve saber também, retrucaram.
Mas sou inocente, foi o outro, não fui eu, respondeu e irritou ainda mais a polícia.
Rua! Gritaram, Rua!
Mas é uma hora da manhã e eu não sei andar nesta cidade, insistiu.
Não é problema meu, voltaram a dizer sem paciência.
A cara do ignorante não era diferente da de um cachorro quando é agredido por algo que não entende. Não há tanta diferença entre a cara de um ignorante e um animal doméstico. Eles olham com um vazio de entendimento que é doloroso, embora cativante ao mesmo tempo. Vai por aqui e segue reto, indicou a polícia querendo se livrar do fardo.
Saiu o ignorante perambulando na madrugada silenciosa da grande cidade. Pediu uma informação:
Para que lado fica a minha cidade?
Não segue por esse lado ou você não vai ver a luz do sol, vai por aqui e se esconde ao ver suspeitos. Esta é pior hora, responderam.
E ele que nunca se sentiu bandido teve medo. Tremeu as carnes, pensou nos pais e aí lembrou que lá também não era um lugar muito tranquilo. Fome, briga, surra, tudo isso acontecendo ao mesmo tempo. A ignorância mata a alma das pessoas, mas não mais do que a fome e o desprezo do estado que torna os marginais invisíveis. Marginal, ele não se sentia assim, apesar de viver à margem a vida toda.
Escondeu-se em uma brecha qualquer e dormiu feito bicho até a manhã arder na cara. Tinha visto o sol nascer e tinha muita sorte. Seguiu perambulando e perguntando onde ficava a sua cidade. Um homem, uma carroça e um burro lhe deram carona. Os marginais se compreendem. Depois seguiu a pé, dezenas de quilômetros. O calor queimando sem pena a pele escura. Sem água, sem comida, sem qualquer pessoa para lhe oferecer amparo, apesar das centenas de carros cruzando sua sombra.
Muito longe, já sentindo a brisa de sua casa, alguém imaginou que pudesse ser o ignorante caminhando sem parar. Era famoso. Tinha estado nas mensagens dos aplicativos dos celulares das pessoas durante dois dias pelo suposto crime praticado. Primeira vez que o notaram na vida o acusaram de matar alguém sem ter prova nenhuma, sem ter indício relevante, sem ter como identificar o dolo.
Alguém numa moto o apanhou na estrada e ele, como se nada tivesse acontecido, subiu calado. Não soube explicar se seria preso de novo, se seria interrogado novamente, se haveria processo. Não soube dar detalhes da conversa que teve com o delegado. Sentiu um pouco de vergonha da mãe e, outra vez na vida, culpado por ser desobediente, como lhe diziam ser. Mas repetiu que não havia matado ninguém e, na noite seguinte, dormiu de peito aberto, salvo pela ignorância.
José de Paiva Rebouças – cronista
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