Sobre

Verdade engarrafada

Manuel Maria, caixeiro viajante de família tradicional galega, dessas que ainda mantém o “x” pronunciado em várias de suas palavras, chegou cedo numa dessas cidades pequenas, ainda com característica de vila, do Rio Grande do Norte, com um produto curioso, mas muito instigante para aquela gente simples. Trazia o mascate, em uma de suas caixas feitas de couro de bode, encardidas por poeira e suor, uma série de garrafas de cor âmbar em formatos diversos, aparentemente vazias, mas que, nas palavras do vendedor, carregavam um dos mais importantes produtos já envasados no mundo.

Teria sido um trabalho, resultado de muito estudo, de um velho alquimista cigano, encontrado por ele em nalguma serra das Minas Gerais, e que estava tendo uma procura muito grande por seus efeitos benéficos. Teria esse sujeito captado as ondas sonoras dos pensamentos e palavras da autenticidade humana e, por meio de um instrumento produzido por ele próprio, com peças de vidro, latão e algum tipo de energia, engarrafado a verdade.
Em sua eloquência de vendedor, disse ao pequeno grupo que lhe rodeava que, ao comprar produto misterioso, bastaria afrouxar a tampa e deixar escapar, aos poucos, sua química para que a verdade fosse estabelecida nos lares e repartições. Ao dizer isso, sacudiu uma das garrafas e os moradores, vários, inclusive, asseguram ter visto se mexer no vasilhame uma espécie de fumaça possivelmente verde. O comerciante explicou, no entanto, que recomendava a compra apenas por pessoas realmente honestas, pois os resultados poderiam ser catastróficos para o comprador.

Obviamente, as pessoas, apesar da curiosidade, deram pouca atenção àquele charlatanismo e usaram suas moedas para adquirir outros utensílios mais necessários em seus casebres, como bacias, facas, tecidos e pomadas diversas. Mas o galego, sapiente, ao fechar as tampas da carroça, afastou-se alguns metros da vila, acendeu um candeeiro e armou uma rede esperando o que, possivelmente, já vinha acontecendo em muitos outros lugares. O que não demorou muito, pois assim que a penumbra cobriu todo o lugar, a primeira pessoa apareceu sorrateiro para comprar a verdade engarrafada.

Até às 4h da manhã, metade da mala tinha sido vendida. Quando o sol esquentou, os moradores não avistaram sequer rastros da carroça do caixeiro que havia sumido em mistério. Na cidade, o silêncio de sempre reinava até que se ouviu o primeiro estardalhaço. Joana de Quitéria deixou a garrafa quebrar ao tentá-la abrir e, no crença de ter sido contaminada pelo elixir invisível, danou-se a contar seus segredos, antes mesmo de acusar o marido, Antônio de Queirá, de estar se deitando com Mariquinha de Chá de Nelson. Foi um estardalhaço e quebra-quebra.

Quando a notícia chegou à casa da citada, motivada por garrafa também aberta, essa deixou escapar outras astúcias, assim como seu marido, de maneira que em meia hora toda a cidade se revelava numa teia de segredos cômicos e escabrosos, o que suscitou ameaças de morte por acusação de pederastia, roubo e pedofilia. Não era possível saber ao certo, dadas as circunstância da confusão, se havia inocente na cidade.

O moleque Pardal, filho de Rosália do Café e Tião Pereira, armou-se de faca e saiu a cavalo em busca do galego Manuel Maria. Com ele, foram os rapazotes Miró de Peba e Sival de Pedro do Açude. Cada um mais brabo que o outro. Encontraram a carroça do mascate 10 léguas adiante nas primeiras horas da noite, mas foram surpreendidos por um velho moreno segurando duas garruchas engatilhadas. Os moços contaram a história e o dito velhote, com sotaque sigano, disse que eles estavam loucos ou embriagados porque, além de nunca ter passado naquela cidade, o galego de que eles falavam tinha morrido há mais de duas décadas e sua mulher havia vendido aquela carroça.

É certo que os valentões não tinham certeza da imagem do galego que haviam visto uma única vez, além do que, era noite escura e eles estavam muito cansados e com fome. Enfrentaram e, sob a mira dos revólveres, ainda vasculharam as coisas até encontrar as garrafas. O velho cigano riu-se e explicou que a coisa da verdade engarrafada era uma brincadeira que ele tinha criado apenas para entreter, mas que as vasilhas eram vendidas apenas para as mulheres guardarem remédio caseiro. Enfurecidos, os moleques quebraram as garrafas e saíram avoados em seus cavalos de volta para casa. No caminho, duvidaram da conversa do cigano sobre o conteúdo dos vasilhames e começaram uma teima. Na vila, as coisas se acalmaram nos dias seguintes, mas nunca mais souberam dos meninos.

Escrito por Paiva Rebouças

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