Sobre

Ato

Por Natália Chagas

Ela andava descalça no meio da lama, feliz como criança. O pai não entendia que graça tinha os pés sujos se Deus havia lhe dado sapatos. A moça, que apesar de seu jeito lépido quase infantil, se tornara mulher recentemente. A mãe havia sido morta na fazenda que moravam em circunstâncias tão cruéis que o pai resolveu ir pelo mundo no meio da noite escondido. Sem dar explicação a quem quer que seja, ele fez uma trouxa com poucas roupas dele e da filha, apenas o essencial, e partiu com coração rasgado e olhos secos de tanto chorar.

Serena não viu o corpo da mãe, então o pai resolveu que ela não precisava saber de nada e mandou-lhe calar. Sem perguntas, sem dor. É melhor assim.

Caminhavam ela na frente, ele logo atrás observando como parecia com a mãe quando eles se conheceram. Isso aprofundava a dor da perda como faca que vai entrando no coração até o punhal. Momentos que ele, bruto, conseguia perceber amor como algo concreto e real desde os carinhos e cuidados do cotidiano até o sexo carnal. Nunca antes havia pensado ser possível para um homem como ele que esses sonhos e devaneios poderiam ser reais. Era coisa de mulher à toa, em sua visão. Bastava uma trouxa de roupa pra lavar, um terreno pra capinar e tudo estava resolvido. Mas se encontrou em situação apaixonada e sonhadora, quase aprisionado em uma arapuca de felicidade. E veio o senhor da terra tomar sua mulher como se fosse de direito dele já que estavam nas terras dele. Sob seus olhos, com arma de jagunço apontada para sua cabeça, ouviu gritos de desespero de seu amor, implorando para que ele parasse, testemunhou o estupro e assassinato de sua amada. “Odeio mulher que grita!” Disse no gozo final, e atirou.

Aquilo rodeava em sua cabeça, e ele, sistematicamente, repetia para si: “Homem só quer sacanagem de mulher. Depois do ato, mata.” Ninguém lhe tirava mais isto da cabeça. Então já que nada mais podia fazer, era melhor andar pra esquecer.

Caminharam dias, secura atrás de mais sol, sem chuva e sem população. Até que entraram em um cruzamento de 4 ruas com uma igreja no meio e um bar do outro lado da rua. Foram ao bar implorar um copo d’àgua. Três ou quatro malandros na beira de um balcão debruçados em copos de cachaça vendo o tempo passar sem ter pra onde ir.

– Boas tardes!

-Boas…

-Tem como matar minha sede e da menina que espera lá fora?

-Quer o que?

-Para mim, qualquer branquinha que dura mais tempo. A menina pede água, se puder. Se não puder, qualquer coisa serve.

O rapaz abriu a dose para Flaurísio, que já foi perguntando:

-Tem trabalho pela região?

-O que ‘cê faz?

-De tudo um pouco.

-Deu sorte. “Seu” Antônio de Medeiros está vindo aí. Pode perguntar pra ele. É o único que oferta alguma coisa.

Flaurísio saiu e tomou a frente do cavalo e já foi guardando e perguntando:

-“seu” Antônio, meu nome é Flaurísio. Faço de tudo um pouco. Fiquei sabendo que é o homem certo pra quem tem vontade de trabalhar.

-Tenho umas coisas aqui e ali que preciso de ajuda, sim. Estou procurando um homem de honra pra me prestar uns favores. Sou muito grato a quem me faz favores.

-Pois, conte comigo para o que der e vier.

-Passe pela manhã em minha casa. É seguindo reto nesta direção, a porteira branca.

-Pois deixe comigo.

Indo em direção ao bar, Antônio viu um par de olhos castanhos gigantes iluminados seguidos de um sorriso autêntico.

-É sua?

Flaurísio olhou para o chão, sua pele inflamou-se, seus olhos encheram de água. Olhou de volta no olho de Antônio, viu os olhos do senhor da terra. Meio a contragosto e pelo canto da boca, respondeu:

-Sim, minha filha.

-Leve ela também. Sei de muitas coisas que ela pode fazer que posso ficar muito grato.

-O senhor pode me adiantar um servicinho qualquer me pagando uma garrafa. É pra não dormir com fome.

-Dê a ele, Juvenal, uma branquinha. Ponha na minha conta. – E sorriu novamente para Serena.

Flaurísio pegou a cachaça, a filha e foi achar uma moita para dormir.

-Acho que o moço gostou de mim. – dizia Serena com os lábios cheio de dentes – será que ele tem serviço pra mim também?

– Vá dormir!

Obedeceu ao pai, que continuou até a última gota da garrafa. As palavras se repetiam na cabeça: “Homem só quer sacanagem de mulher. Depois do ato, mata.”

A moça já dormia, ele balbuciava:

– Ninguém vai me tirar minha Rosa de mim novamente. Não posso deixar. – Foi até a menina, pegou em seus pés, virou seu corpo de barriga para cima, abriu seus joelhos, levantou-lhe a saia.

-Pai, o que acontece?

-É para seu bem.

A ausência da calcinha era marca registrada de Rosa, e ele se lembrou. O contorno vaginal de Serena rosado e limpo fez o pênis de Flaurísio se tornar duro, e em um duplo grito ele lhe rasgou a virgindade, e permaneceu entrando e saindo aos berros de: “É para seu bem!”

Ao ver os olhos da filha em total desespero, quis expulsá-los para fora espremendo a cabeça pela garganta.

Os sons da noite tomaram lugar da angústia e dor. O sol nasceu. Flaurísio levantou e seguiu para o próximo vilarejo.

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